Após uma semana de chuva recorde no Rio Grande do Sul, o Brasil vive uma nova tragédia ambiental e humanitária. Estamos todos impactados com as notícias que chegam de Porto Alegre e do interior do estado. Os mortos que as águas levaram se contam às dezenas. Desaparecidos, passam de 100. Centenas de feridos. Desabrigados, já são milhares. Quase 1,5 milhão de pessoas afetadas. Cada história de vida e morte nos emociona. Os heróis anônimos se multiplicam – e suas histórias inspiram.  

Aqui no WRI Brasil estamos especialmente abalados com a tragédia: um de nossos escritórios fica em Porto Alegre, onde temos dezenas de amigos, colaboradores e parceiros. Temos buscado ações para minimizar o impacto e cuidar das pessoas.

Hoje, somos milhões de brasileiros numa corrente de solidariedade. A situação é de incerteza, preocupação e medo. As águas ainda sobem em algumas regiões. E a cada dia chegam novas informações de desabastecimento de água potável e de energia. O momento é de solidariedade no socorro às pessoas ilhadas e de focar em doações para quem precisa, num cenário em que se espera para breve a chegada do frio do inverno.  

É necessário olhar para essa tragédia sob uma perspectiva mais analítica e propositiva, especialmente depois das pessoas voltarem para suas casas, retomarem suas vidas e o trabalho de reconstrução começar -e, daí sim, termos a exata dimensão das perdas e dos estragos. É um exercício fundamental, dado que nos últimos 12 meses a região Sul do Brasil já foi atingida por cinco ciclones extratropicais – fato agravado em 2024 pela incidência de um forte El Niño. Segundo a Confederação Nacional dos Municípios, mais de 28,8 milhões de pessoas foram afetadas por desastres relacionados a chuvas, inundações e deslizamentos entre 2017 e 2022. Em apenas um ano, esses desastres custaram mais de R$ 105 bilhões aos cofres públicos -ou seja, a cada um de nós.  

Chuvas - e também secas prolongadas - cada vez mais intensas são a nova realidade do Brasil, e preparar as cidades brasileiras é uma tarefa urgente. Vivemos tempos extremos. Há muitos fatores que concorreram e convergiram para essa crise humanitária e ambiental. Todos são relevantes e merecem um olhar cuidadoso dada sua complexidade e interconexão.

Mas desde já é preciso trazer para o debate as responsabilidades - e eventuais falhas - do Poder Público, nas esferas municipais, estadual e federal. Projetos de mitigação de riscos e prevenção de desastres ficaram engavetados por anos em todas as instâncias de Poder. O gerenciamento foi falho. Houve baixa integração entre estados e municípios. Ainda há políticos e administradores públicos que duvidam das mudanças climáticas ou que não utilizam de modelos climatológicos em escala espacial e temporal adequada para seus planejamentos. O zoneamento ecológico engatinha. Há falta de recursos. E houve desmonte ao longo dos últimos anos de legislações ambientais, reduzindo a resiliência do estado a choques climáticos – que são o “novo normal”. Estamos falando de governantes das mais variadas agremiações partidárias, deixando claro que a falta de prioridade atravessa todos os campos do pensamento político nacional.  

Não se pode minimizar a dificuldade de planejamento, execução e de manter planos efetivos de prevenção e gerenciamento de riscos de inundações ou frente a outros desastres naturais, seja no Brasil ou em outros países. Ainda mais em um planeta que passa por mudanças climáticas cada vez mais aceleradas.  

Apenas nas últimas semanas, diversos países em diferentes continentes enfrentam consequências desastrosas. Relatos de nossos colegas do WRI África dão conta de que o Quênia sofre, neste momento, com chuvas e o rompimento de barragem. Na China, uma rodovia deslizou pela encosta de uma montanha no sul do país. Em Dubai, pistas do aeroporto ficaram submersas no meio do deserto. Na Austrália, minas foram inundadas.  

"Nesse contexto, é importante lembrarmos que os impactos das mudanças climáticas afetam desproporcionalmente os mais vulneráveis, e nos obrigam a buscar soluções de adaptação urgentemente", afirma Luis Antonio Lindau, diretor de Cidades do WRI Brasil. Já a diretora de Clima do WRI Brasil, Karen Silverwood-Cope, pondera também que não faltam dados qualificados de previsões climatológicas e de análise de risco, exposição e vulnerabilidade no país. Instituições públicas, como o Instituto Nacional de Pesquisa Espacial (INPE), têm indicado há tempos o alto nível de risco do país aos impactos de eventos extremos de precipitação, seca, assim como de eventos gradativos, como a elevação do nível do mar.  

As soluções passam por medidas de gestão de risco, como sistemas eficientes de alertas e gestão de desastres, mas não só. Em muitas regiões estamos utilizando a infraestrutura do século 20, focada quase que somente em concreto e aço. Temos que mudar o paradigma para a infraestrutura do século 21, que faz uso de soluções da natureza.  

Essas novas soluções incluem gestão de uso do solo urbano alinhado a políticas habitacionais. É preciso enfrentar a questão da habitação, com foco em planos diretores e zoneamentos que considerem a complexidade do tecido urbano. Viabilizar moradias seguras e próximas das oportunidades de trabalho, estudo e lazer. As novas soluções necessitam de muitos investimentos em obras de prevenção e adaptação. Demandam cooperações entre municípios e estados – dado que rios cortam divisões geográficas burocráticas e nos mostram, uma vez mais, que precisamos de respostas integradas. E é preciso garantir que o financiamento climático para adaptação e resiliência chegue aos municípios e aos mais vulneráveis. Por fim, será necessária uma concertação envolvendo governos, sociedade civil e o setor empresarial.  

No meio de toda esta tragédia, temos nutrido uma esperança alentadora. Relatos da nossa equipe em Porto Alegre dão conta de que a maior força de resgate e assistência às vítimas e desabrigados vem da “nossa gente”, as pessoas comuns. Cidadãos que decidiram ficar na cidade e ajudar vizinhos e desconhecidos em bairros mais afetados. Voluntários solidários com a dor dos outros. Que estão arriscando sua saúde e bem-estar para entrar até o peito nas águas barrentas do Guaíba que agora invadiram a cidade. Que estão se mobilizando através das redes sociais e organizando equipes de salvamento em barcos, em jet-skis, em lanchas, em botes de borracha, a pé e como for possível. Que ajudam os valorosos bombeiros, a Defesa Civil e os times de assistência social das prefeituras da região metropolitana e do interior.  

É preciso vontade política para lidar com os novos desafios econômicos, sociais e ambientais trazidos pelas mudanças climáticas. Soluções existem, mas não são simples. E por vezes parece que estamos remando contra a maré do conhecimento, num enorme descompasso entre o passado e o futuro. Já passou da hora de ousarmos fazer mais e diferente, inspirados nas milhares de pessoas arriscando suas vidas e se mobilizando para ajudar desconhecidos. Quando olho para esse movimento, identifico uma força humana poderosa. É dessa energia solidária que precisamos para enfrentar os desafios hoje postos pela emergência climática.  

Cristiane Fontes (Krika), diretora-executiva do WRI Brasil